segunda-feira, 8 de março de 2010

Sacolas plásticas: podemos viver sem elas?


Senac e Educação Ambiental 29 Ano 18 • n.2 • julho/dezembro de 2009
Sai de casa e vai ao comércio, em cada loja
que entra para comprar um produto
ganha uma sacolinha. Vai à farmácia,
ganha a sacola. Vai no supermercado,
ganha outra. Quando vê, volta pra
casa com aquele monte de sacolas.
É um desperdício.”
logia, pois nem mesmo no Canadá e
na Inglaterra, onde foi desenvolvida,
sua produção foi liberada.
O professor do Programa de Engenharia
Química da Coppe/UFRJ, José
Carlos Pinto, afirma que essas sacolas
são uma solução ambientalmente
incorreta: “Elas se transformam em
pó e obviamente poluem o solo e a
água. Além disso, para fazer essa
transformação, utilizam-se catalisadores
à base de metais pesados
como titânio e chumbo, que vão
poluir mais ainda e poderão voltar
ao corpo humano através de carnes
e vegetais contaminados, o que é um
absurdo”. Para o químico, a solução
para as sacolas plásticas está na reciclagem
e no reúso.
Fernanda Daltro concorda. Além da
reciclagem, a redução do consumo
e o descarte adequado são os principais
focos de atenção das políticas
públicas. “Não temos, por exemplo,
a coleta seletiva estruturada no
país. Apenas 10% dos municípios
possuem coleta seletiva. Precisamos
implementar uma estrutura pública
que permita uma coleta de resíduos
sólidos adequada, para que as pessoas
deixem de desperdiçar”.
Menos seria demais!
Não é o caso do Rio de Janeiro, que
saiu na frente e se tornou o primeiro
estado brasileiro a criar uma lei
que obriga os estabelecimentos
comerciais a substituírem, ao longo
dos próximos três anos, as sacolas
plásticas por sacolas retornáveis. A
lei fluminense determina ainda que o
cliente poderá trocar 50 sacos por um
quilo de alimento ou ganhar um desconto
de R$ 0,03 a cada cinco itens
levados fora de sacos plásticos.
Para o presidente do Conselho Empresarial
de Meio Ambiente da Associação
Comercial do Rio de Janeiro,
Haroldo Mattos de Lemos, essa lei
ainda precisa de ajustes. “Ao invés de
proibir as sacolas plásticas, por que
não se estimula o seu reúso, como
acontece na Europa? Lá, o cliente usa
uma sacola plástica mais resistente
e, quando volta ao mercado, ele a
leva, pois senão vai pagar por uma
nova sacola”.
Essa alternativa esbarra numa questão
chave: a má qualidade das sacolas
plásticas brasileiras. Segundo
a Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT), existe uma norma
O mundoX sacolas plásticas
Os Estados Unidos são os campeões
no consumo de sacolas
plásticas no mundo: 100 bilhões
ao ano. Para fabricá-las,
anualmente são necessários 12
milhões de barris de petróleo.
Mas São Francisco, na Califórnia,
se tornou a primeira cidade
norte-americana a proibir o uso
de sacolas plásticas em 2007, e
outras cidades como Filadélfia,
Boston e Seattle estão seguindo
o mesmo caminho.
No início de 2008, a China proibiu
a distribuição gratuita de sacos
plásticos no comércio. Em Bangladesh,
na Austrália e na cidade
do México aconteceu o mesmo.
Na Itália, elas serão proibidas
a partir de 2010. Na Alemanha,
na Dinamarca, na África do Sul
e na Irlanda, é preciso comprar
sacolas plásticas nas lojas. Parte
desse dinheiro é investido em
gestão do lixo nas cidades.
Em Zanzibar, um conjunto de
ilhas na África, o governo foi
mais radical. Como o turismo ali
é a principal atividade econômica
e as sacolas plásticas estavam
afetando a vida marinha, quem
for pego usando sacola plástica
vai preso por seis meses ou paga
dois mil dólares de multa.
Saco é um saco
Seguindo a tendência mundial de
combate ao excesso de consumo
de sacolas plásticas, o
Ministério de Meio Ambiente lançou,
em junho, a campanha Saco é um
saco, que visa despertar a atenção
da população para a questão e provocar
uma mudança de hábitos que
culmine numa redução de resíduos
sólidos. “A campanha está tendo um
retorno muito positivo. A Wal-Mart,
uma grande empresa de varejo,
aderiu primeiro, mas agora a lista
está enorme, com a adesão de outras
grandes empresas como o Carrefour
e a Kimberly Clark. E a tendência
é que essas parcerias aumentem”,
explica Fernanda Daltro.
Ela conta que já existem diversas
prefeituras e governos estaduais procurando
o Ministério: “Somos uma
referência, e estamos defendendo
um bem muito maior, que é a natureza.
Nós temos de estimular o debate
na sociedade e ir trabalhando em
diversas frentes, seja governamental,
empresarial ou social”.
Uma das ações governamentais
que vem se popularizando no país
no combate às sacolas plásticas é a
substituição delas pelas chamadas
sacolas “oxibiodegradáveis”. Três
estados já adotaram sacolas desse
material: Goiás, Espírito Santo e Maranhão,
além de alguns municípios,
como Sorocaba e Guarulhos (SP).
Outros, como São Paulo, vetaram
projetos de lei que propunham a
troca. Tudo por conta das dúvidas a
respeito da sua degradação. Apesar
de os fabricantes garantirem que elas
desaparecem no meio ambiente em
até 18 meses, o Ministério de Meio
Ambiente não apoia essa nova tecnofoto:
Ricardo Funari\BrazilPhotos
Ano 18 • n.2 • julho/dezembro de 2009 30 Senac e Educação Ambiental
Os 4Rs das sacolas
plásticas
RECUSAR – Sempre que puder,
recuse a sacola plástica e ajude a
diminuir a demanda por recursos
não-renováveis.
REDUZIR – Pense se você realmente
precisa de tantas sacolas
plásticas armazenadas em casa.
Diminua a quantidade guardada,
mas não jogue fora, vá armazenando
menos e racionalize seu uso.
REUTILIZAR – É usar de novo, dar
outra finalidade. Use como saco
de lixo, sacola de novas compras,
embalagem etc.
RECICLAR – É transformar materiais
para a produção de matériaprima
para outros produtos por
meio de processos industriais ou
artesanais. As sacolas plásticas
também são recicláveis. Até as
que se rasgam devem ser encaminhadas
para a reciclagem, como
o plástico da garrafa PET. Nunca
jogue fora no lixo comum.
estabelecida
para esse produto, que deve ter uma
espessura adequada para agüentar
até seis quilos. Mas a realidade é bem
diferente. A qualidade das sacolas de
supermercado é tão ruim que obriga
o cliente a usar duas e até três sacolas
de uma vez para carregar os produtos.
“Infelizmente, não existe legislação
para regulamentar isso. A norma da
ABNT é apenas uma norma, que o
fabricante respeita se quiser. O lojista
deveria cobrar mais qualidade, mas
isso é delicado, pois mexe com custo.”
Mattos argumenta que caberia ao
próprio cliente cobrar pela qualidade
das sacolas plásticas: “Só assim o
dono do mercado poderia exigir do
fornecedor uma sacola mais resistente,
o que poderia reduzir o número de
sacolas em circulação”.
Ele afirma que os donos de supermercados
e outros lojistas estão
acompanhando a aplicação da lei
com preocupação, e defende que
a proposta de troca de sacolas por
alimentos deveria ser revista, já
que não há uma contrapartida do
governo. “O objetivo principal da lei
não é reduzir o consumo de sacolas,
mas proteger o meio ambiente, e por
esse objetivo estamos todos juntos
lutando. Por isso, precisamos ajudar
os legisladores a aperfeiçoar a lei, à
medida que as dificuldades forem
surgindo”, destaca.
Outro problema é a adesão da população:
cerca de 80% das pessoas
vão ao mercado a pé ou de ônibus e a
sacola plástica facilita muito o transporte
das compras. Fabíola dos Santos
é um bom exemplo. A estudante
de Direito de 22 anos assume que
teria preguiça de levar uma sacola
retornável de casa cada vez que fosse
à rua fazer compras. “Acho a lei superválida,
mas muito difícil de pegar.
Carioca é meio folgado, sempre vai
querer dar um jeitinho, ainda mais se
tiver de pagar pela sacola retornável,
vai sempre preferir o caminho mais
fácil”. Mas confessa: “Hoje eu penso
assim, mas, no futuro, quem sabe, se
todo mundo aderir, eu até poderia me
esforçar, comprar uma sacola retornável
e mudar meus hábitos”.
Já Pedro Nascimento Peixoto, de 76
anos, é o oposto. Este autodenominado
“jovem advogado aposentado”
é um entusiasta da ideia de
substituir sacolas plásticas pelas
retornáveis: “Eu sou do tempo em
que se fazia mercado com sacola de
algodão e não tinha nenhum problema.
Assino embaixo e vou aderir à
lei, sim. Quero um mundo melhor
para minha neta. Lá em casa sou eu
quem faço as compras e evito levar
tantos sacos. Vou começar a estimular
os amigos a fazer o mesmo. As
pessoas precisam se conscientizar
de que usam sacolas plásticas demais!”
Carioca da gema, o dr. Pedro
lamenta as praias poluídas. “O mar
é o mais prejudicado. Tanto plástico
só serve pra poluir o meio ambiente”,
sentencia.
Mudando hábitos e
mentes
O entusiasmo do dr. Pedro parece ter
acompanhado os adeptos da campanha
Saco é um saco. Segundo dados
do Ministério do Meio Ambiente, a
Wal-Mart, por exemplo, registrou, só
nos meses de julho e agosto de 2009,
uma redução no consumo de quatro
milhões de sacolas plásticas em suas
lojas. A adesão à campanha faz parte
de um conjunto de ações que vêm
sendo adotadas desde o final de
2008 e que fazem parte do projeto
Sustentabilidade: “Já vendemos
mais de 2 milhões de sacolas retornáveis
e já evitamos o consumo total
de 9,1 milhões de sacolas plásticas
oferecendo descontos para quem
deixa de usá-las. Acreditamos que a
empresa tem um papel importante na
reeducação de hábitos de consumo”,
afirma Cristina Cassis, responsável
pelas relações com a imprensa da
Wal-Mart.
Fernanda Daltro, do Ministério de
Meio Ambiente, acredita que é pela
educação que se muda esse quadro:
“A lei das sacolas no Estado do Rio
deve ser acompanhada de uma campanha
educativa, para conscientizar
as pessoas da importância, para a
vida delas, de se diminuir o uso das
sacolas plásticas.”
Em Belo Horizonte, por exemplo,
onde desde fevereiro deste ano as
sacolas plásticas começaram a ser
abolidas dos supermercados, na prática,
nada parece ter mudado. Célia
Franco, bancária aposentada de 63
anos, costuma usar uma sacola retornável
por hábito, mas não percebeu
mudanças grandes nos mercados e
lojas que frequenta: “O que eu notei
é que, antes, as sacolas plásticas
ficavam à disposição de quem quisesse
pegar aos montes. Hoje, elas
ficam em caixinhas como de lenço de
papel, e só dá para tirar uma por uma.
E as sacolas retornáveis estão mais à
vista”. Outra coisa que a aposentada
reparou é que nos mercados mineiros
existe o hábito de deixar caixas
de papelão à disposição dos clientes
para guardarem as compras. “Isso
facilita a vida de quem usa carro para
fazer mercado”, afirma ela.
Fernanda Daltro destaca que essa é
uma boa alternativa às sacolas plásticas:
“Deixar engradados no portamalas
ou sacolas retornáveis dentro
do carro também ajuda na hora das
compras. É preciso usar a imaginação
e ter força de vontade para poupar a
natureza”.
Para saber mais:
Campanha Saco é um saco
http://blog.mma.gov.br/sacolasplasticas/
foto: Divulgação-MMA
O ministro Minc no lançamento da
campanha "Saco é um saco"
Senac e Educação Ambiental 31

Monica Maria

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Fábulas - La Fontaine


O cavalo que se quis vingar do veado
Barão de Paranapiacaba (Trad.)

Antigamente os cavalos
Para nós não trabalhavam.
Quando os homens primitivos
De glandes se contentavam,
O burro, o cavalo, a mula
Livres na selva erravam.

Não havia, como agora,
Arado, albardas, selins,
Cadeirinhas, carruagens,
Arnêses, grevas, fains
Nem também tantos banquetes
Casamentos e festins.

E, pois, nesses belos tempos
Certo cavalo apostou
Com um cervo, que na carreira
Muito a distância o deixou.
Para vingar-se - o vencido
Humano auxílio buscou.

O homem meteu-lhe um freio,
E saltando-lhe o costado,
Somente lhe deu descanso,
Quando o mísero veado
Foi do cavalo à vingança,
Afinal, sacrificado.

Isso feito - eis o cavalo
Agradece ao benfeitor
E diz-lhe: "Sou todo vosso
Por tão distinto favor;
Volto à espessura selvagem,
Adeus, adeus, meu senhor!"

"- Isso é que não! (volve o homem)
Melhor aqui ficareis;
Hoje, que sei vosso preço,
Penso e leito gozareis;
Abarrotada de feno
A manjedoura tereis".

Ai! De que vale a fortuna
Se a liberdade é perdida!
Viu-se o cavalo privado
Do maior bem desta vida.
E que volta? A estrebaria
Estava já construída.

Ali terminou seus dias.
Sempre arrastando o grilhão.
Não fora melhor que houvesse
Dado à vingança de mão,
Outorgando ao pobre cervo
Da leve ofensa o perdão?

Por maior que seja o gozo,
Que da vingança provém,
Caro paga o que a consegue
Com a perda do imenso bem,
Junto ao qual todos os outros
Preço ou valia não têm.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Aluísio Azevedo

O TOURO NEGRO

A notícia de uma estrondosa corrida de touros, que se ia dar na velha cidade da Galiza, onde nessa época me achava, assanhou o povo como por encanto, pondo-lhe o ânimo num estado de alegria do qual estava eu bem longe de o supor capaz. Viria como primeiro Espada e chefe da "cuadrilla" o guapo Torbellino, dono então por alguns instantes da cruenta alma espanhola, sem conseguir, está claro, com esse passageiro namoro, distraí-la completamente da sua sádica paixão por Lagartijo e Frascuello.

A boa nova começou logo a chamar gente de todas as cidades e povoações vizinhas. Ninguém por ali em volta resistia ao sôfrego desejo de vir buscar o seu quinhão de sensações violentas, que tão grata tourada prometia, e gozar o seu bocado de sangue fresco, que havia tanto tempo já se não gozava por aquelas alturas. Dir-se-ia que os restos da sacrossanta Espanha de Torquemada e de Filipe II, não se podendo saciar como dantes, nos bons tempos como o capitoso sangue dos heréticos e dos ímpios, se contentava agora, em falta de melhor, com o inócuo sangue de bois e de cavalos, Sempre na esperança, todavia, de qualquer acaso feliz que viesse enriquecer a festa com o apreciável sangue de algum toureiro desastrado.

E já não havia meio de conter a sofreguidão pública pelo prometido regabofe, quando chegara afinal o grande dia, deslumbrante ao vivo sol de Agosto e aclamado ardentemente pelo povo como um dia de glória nacional. Houve salvas e toques de corneta ao romper d’alva. Das duas da tarde em diante, as principais ruas da cidade, no meio de uma poeirada de cegar, transformaram-se em estrepitosas torrentes de carruagens, carroças, ginetes, e peões de toda espécie, que lá iam, em ansioso alarido, desaguar na praça de touros..

À entrada do circo, donde vinha um quente rumor de caldeira a ferver, homens de má catadura, com grandes tabuleiros amparados ao ventre e suspensos do pescoço por grossa correia do couro cru, ofereciam aos circunstantes, não refrescos, frutas e flores, mas navalhas e facas de todos os feitios e tamanhos. Mais adiante, viam-se outros a vender, em vez de doces e confeitos, chouriços, paios e lingüiças, e ouviam-se ainda outros, cercados de barris e garrafões, apregoar vinho, azeitonas e aguardente. Em volta dos felizes que entravam para assistir ao espetáculo, rilhava invejosa a matilha dos que ficavam cá de fora sem poder fazer outro tanto, e um enxame de mulheres, de laço de cor à cabeça, doidejava em redor dos sujeitos que se dirigiam aos corretores de bilhetes, suplicando-lhes, a sorrir ansiosas, uma senha de entrada em troca de tudo que elas lhes pudessem dar com o corpo, e mendigos berravam por outro lado, lanceando o espaço com os dedos hirtos, a reclamar esmolas como quem reclama justiça no meio de caifases, e atiravam para o ar o nome de Deus e das virgens num intenso diapasão de pragas; ao passo que os guardas civis, sombrios debaixo do seu reluzente chapéu de oleado em forma napoleônica e da sua enorme capa, rondavam de um lado para outro, cruzando-se com os chulos de facha encarnada e as manolas de trunfa alta, que também rondavam, mas com fins inteiramente opostos.

O corredor do anfiteatro estava ensalsichado de espectadores até a boca, e lá dentro, tanto do lado da sombra como do sol, não havia lugar vazio. Meu banco felizmente era à sombra, e eu via palpitar no lado contrário, em plena luz, os leques de milhares de espectadores de ambos os sexos, lembrando borboletas presas pelos pés e doidas por voar; as sombrinhas de todas as cores, as vistosas mantilhas e as roupas claras tinham, nessa vasta e iluminada banda do circo, um aspecto tão alucinador, que parecia ser a expressão palpável daquela infernal algazarra, feita da rixa e riso, e da qual os palavrões obscenos se destacavam, iguais a esses estalos mais fortes que rebentam por entre a constante crepitação de um incêndio na floresta virgem. Ouviam-se de todos os lados sonoras pragas e alegres exclamações de arrancar couro e cabelo; à minha esquerda, uma família em que havia meninas menores de quinze anos, manifestava o seu entusiasmo pelo mesmo depilatório sistema, e aqueles castos ouvidos recolhiam palavras capazes de fazer tremer a um soldado, que não fosse espanhol; à minha direita o chefe de outra família, sem dúvida não menos honesta que a da esquerda, empinava de vez em quando uma formidável borracha de vinho, a que ele chamava "bota", e fazia também beber aos seus por igual sorte, entremeando os sucessivos tragos com tarascadas de chouriço, partidas rente da boca por uma navalha, de inquietadoras proporções.

Cinco minutos antes das quatro horas, momento marcado a rigor para começar a função, a berraria recrudesceu, preparando-se já para protestar, mas o alcaide da cidade, pomposo nas suas insígnias, assomou logo no camarote de honra, acompanhado pelo presidente da corrida, cumprimentou cerimoniosamente o público, e uma vibrante cometa militar, acolhida com tumultuosos regozijos, deu o sinal de abertura. Rompeu então a banda de música a tanger uma marcha dobrada, escancararam-se as grades de um portão no lado oposto ao da entrada de espectadores; e entre aplausos gerais a "cuadrilla" fez a sua solene aparição na liça.

Vinha na frente, a cavalo, o Primeiro Espada, o guapo Torbellino, todo agaloado, com chapéu de plumas e botas de canhão empunhando senhorilmente o seu bastão de chefe; seguiam-se os bandarilheiros e capinhas, a dois e dois, numa vistosa ala de cinco pares, todos a gingar, brilhantes nos seus bordados trajos de jaqueta curta e calção justo, o braço esquerdo dobrado por debaixo da capa vermelha e o direito solto, acompanhando os requebros do corpo; fechavam o séquito os picadores, em número proporcional, formados de três a três, com brutais perneiras de chumbo e lanças formidáveis, cavalgando velhas alimárias, tristes e alquebradas, que ali vinham, depois de uma dura vida de trabalhos no campo ou nas cidades, para ser, em recompensa dos seus bons serviços, escorneados por companheiros de martírio.

Feita a apresentação, separados da "cuadrilla" os toureiros que tinham de ficar na praça e correr o primeiro touro, fechado de novo o portão por onde vieram, bem vendados os olhos aos cavalos dos picadores, para que não fugissem espavoridos ao perigo, a cometa deu novo sinal, abriu-se daquele mesmo lado uma cancela, e a vítima designada surgiu a galope, estacando logo, porém, em pleno circo, fascinada e aturdida no meio de toda aquela estrondosa berraria, a olhar perplexa para todos os lados, até que, como se só então desse pela presença dos capinhas, investiu contra um deles.

Estava travada a pugna.

E começaram a repetir-se defronte daqueles milhares de olhos ávidos as estafadas sortes e passes, que há séculos a Espanha vê e revê sempre com o mesmo entusiasmo, e que sempre aplaude com a mesma convicção patriótica. Os capinhas, como há cem anos, atormentavam a pobre besta, negaceando defronte dela com as suas irritantes e traiçoeiras capas vermelhas, ou os bandari1heiros lhe espetavam na espádua e no pescoço farpas carregadas de enfeites e às vezes também de fogo, ou então os picadores lhe apresentavam as ilhargas das suas deploráveis cavalgaduras para que o enfurecido animal as destripasse ferozmente e também como há cem anos, se o mísero cavalo não morresse logo à primeira agressão e ainda se pudesse equilibrar sobre as patas, recolham-lhe de novo ao ventre os intestinos, cosiam-lhe o couro com alguns pontos apressados, e de novo o ofereciam sempre com a venda nos olhos aos truculentos Cornos, e afinal, ainda como há cem anos, quando o touro se achasse já bem cansado e exausto, o matador se apresentava defronte dele com a sua gloriosa espada e lha enterrava na cerviz até matá-lo. Fidalgo, gesto que sempre teve o condão de arrancar do público espanhol delirantes manifestações de aplauso, traduzidas não só em brados de louvor e em flores, ali mesmo arrebatadas do próprio colo ou do próprio toucado pelas mulheres, mas muitas vezes também em ricos lenços de renda, finos leques e até jóias preciosas, que lá iam cair aos pés do triunfador de envolta com charutos, cigarros e moedas de prata arremessadas pelos homens.

Só a quinta e última corrida da tourada, graças ao imprevisto das circunstâncias que se deram nela, discrepou daquele venerável ramerrão, e por isso mesmo foi a única digna de ser contada.

O touro então a correr era um belo animal negro e reluzente, com os cornos curtos e afilados como os de um búfalo.

Ao abrirem-lhe a cancela, ele invadiu a praça num formidável e insólito galope, centrípeto e cerrado, e a circulou repetidas vezes, com tal velocidade e tamanha fúria, atropelando tudo por tal modo, que foi logo uma debandada geral em toda a arena; os capinhas e bandarilheiros voaram por cima da trincheira, sem quase lhe tocar com a mão, e os picadores, chumbados aos seus pretensos corcéis, abeiravam-se dela e eram às pressas colhidos lá de dentro e carregados no ar, a pulso, como manequins de pernas tesas, entretanto que os expiatórios rocinantes, abandonados e às cegas, iam recebendo cornadas por conta própria e pela de todos os lidadores que desertavam o campo. Eram três os míseros, e os três pouco tardaram a cair mortos, enchendo de sangue o chão já coalhado de restos das capas, sombreiros, lanças bandarilhas e outros despojos, que o touro espezinhava com raiva rugindo de cabeça erguida.

O público, a patear e a trapejar com as bengalas, protestava em delírio contra a ausência dos toureadores no lugar do perigo, e reclamava, a berros loucos, novos cavalos na praça como estabelecia o regulamento das corridas E essa feroz reclamação de "chair-au-taureau" encheu muitos minutos, que foram até aí os mais estrepitosos da tourada.

Era tal o fragor, que o touro pela primeira vez se mostrou atordoado e se pôs a correr à toda, procurando instintivamente uma abertura qualquer, por onde fugir àquela diabólica tempestade que bramia em redor dele e parecia querer tragá-lo.

A tempestade se acalmou quando de novo se abriu o portão, para dar passagem a outra turma de três picadores, desta vez precedidos por todos os toureiros da "cuadrilla", que foram entrando de cambulhada e dispostos para tudo. Torbellino, agora vestido de seda cor de esmeralda recamada de galões de ouro, trazia consigo uma cadeira, cuja magistral sorte figurava no programa da corrida em letras garrafais.

Mas o tremendo adversário não lhes deu tempo para negaças, e de roldão foi investindo sobre um dos picadores, que logo desabou da sela como um S. Jorge, e ao qual era preciso acudir antes de mais nada e carregar prontamente dali, se o não queriam ver num ápice acabar nas pontas do touro. E para este distrair e arredar daquela zona durante a subtração do picador em apuros, armou-se em volta dele uma agitada tropelia, enquanto os outros dois cavaleiros, bem cientes do que os esperava, tratavam de chegar-se à salvadora trincheira, contra a qual de fato eram em poucos segundos arrojados impetuosamente com as suas cavalgaduras, apesar de receberem a ponta de lança o cornígero agressor.

Derreados os cavalos e eclipsados os picadores o touro fez-se de todo para os capinhas, que, aliás, não conseguiram capear uma só vez e quando muito só lograram enraivecê-lo ainda mais. De cada feita que o quadrúpede arremetia sobre um deles saíram-lhe os outros pelos lados, agitando as capas, sem lhe dar tempo a marear alvo para o assalto. Todo o empenho dos toureiros era fatigá-lo, a ver se desse modo alcançavam equilibrar as forças em ação e obtinham, para decoro profissional, realizar algumas sortes, embora das mais simples, como o passe da Verônica ou da Navarra.

O touro, com efeito, apesar de sempre árdego e rebelde, já dava mostras de cansaço e parecia já não acometer com a mesma veemência, tanto assim que Torbellino, sem se poder conformar com aquela vergonhosa corrida composta só de correrias de um para outro lado da praça e repetidas escaladas à trincheira resolveu salvar a situação com um golpe da audácia e declarou que ia executar imediatamente a sua famosa sorte da cadeira.

O público aclamou-o de novo mas desde que ele, com um par de farpas na mão direita e a cadeira na outra se pôs a bater com aquelas, chamando o touro à cita. este, em vez de partir de cara, como era de esperar, torceu de banda, antecipando-se assim no ardiloso requebro que o toureiro contava fazer, e repontou-lhe pela esquerda, sem lhe dar tempo senão para fugir. De sorte que os papéis singularmente se trocaram, o toureiro não toureou e o touro toureara, e Torbellino lhe teria sentido o gosto dos cornos se não se livra tão depressa, abandonando ao adversário as farpas e a cadeira, que voou logo em estilhas pelos ares.

O pior, porém, é que o demônio do animal se lhe ferrou no encalço, e começou a persegui-lo a galope cerrado por toda a volta em redondo da praça, sem fazer caso dos capinhas que tentavam desviá-lo da porfia. Torbellíno, afinal, com inaudita destreza, agarrou-se na carreira que levava à borda da trincheira e a transpôs de um salto; o touro, porém, não menos destro, galgou-a atrás dele, rastejando-lhe a pista.

E então é que foram elas! No interior da trincheira havia como sempre refúgios e defesas, mas a tudo levava o touro de vencida, ameaçando até as primeiras filas de espectadores. O pavor não podia ser maior. Na inversão dos pontos de perigo, via-se agora encher-se a arena com os que a invadiam, saltando a trincheira falsa em busca de segurança, e era lá para dentro que acorriam os capinhas em perseguição do intourejável boi.

Ah! não havia dúvida que a quinta corrida, se, pelo seu imprevisto, ia bem para grande parte do público, ia positivamente muito mal para os toureiros. Das farpas e bandarilhas destinadas ao feroz bicho, nenhuma lhe chegara a picar o couro; das lanças dos picadores que o atingiram, a nenhuma foi dado conservar-se inteira, e dos últimos três cava]os sobrevindos, só um vivia ainda, e esse mesmo já ferido nas costelas e mal se podendo ter nas pernas.

Agora, o que os espectadores reclamavam nos seus implacáveis berros, era a presença do touro na praça; felizmente, porém, já lá dentro tinham conseguido encurralá-lo, e não tardou a que o restituíssem no público.

Vinha cansado e vinha colérico. ~ surgiu, entretanto, na liça, encapotou logo, assestando para frente, cornos afilados, e desembestou, tal qual ao iniciar a corrida, no seu centrípeto galope a que nada resistia.

A praça esvaziou-se inda uma vez, e o touro, bem senhor dela, como para completar a sua vitória. arremeteu contra cavalo já ferido de morte, único sopro de vida que ali respirava. A pobre cavalgadura jazia encostada à trincheira, com os olhos sempre vendados, e com o sangue a desfilar-lhe por entre as costelas partidas. Ao primeiro assalto caiu logo, mais de costa que de flanco, agitando as patas no ar. O touro acometeu-o de novo, engolfando-lhe no ventre os cornos por inteiro e revolvendo-lhe as entranhas que arrancou afinal de todo para fora.

O desviscerado escorjava-se, ululando, num tremor de todo o corpo, e o touro, a saciar nele a sua tremenda cólera, só recolhia as armas para as cravar de novo com mais fúria. Depois, não conseguindo nelas levantar a vítima e arrojá-la, como um despojo vil, por cima da trincheira, se desforrava em mergulhar de todo a cabeça no arrombado ventre do agonizante, esfocinhado lá dentro na sangrenta lameira dos intestinos.

O público, empolgado por tão cruenta ferocidade, esqueceu-se dos toureadores, para dar todo o seu entusiasmo ao touro. Os aplausos rebentaram do anfiteatro em peso mais delirantes do que nunca, e o inconsciente herói como se os compreendera, sacou a cabeça das entranhas do cavalo para encarar orgulhoso a multidão, apresentando-lhe uma hedionda máscara vermelha e verde, feita de estrabo e de sangue.

Redobrou o entusiasmo, e uma ânsia febril apoderou-se dos espectadores.

- Que lo maten! Que lo maten!

E a nuvem dos toureiros acudiu de novo à praça. O touro, na sua imediata investida, viu-se logo cercado por todos os lados, e, arquejante de cansaço, já sem força para os repelir, escamava a terra com as patas dianteiras.

- Que lo maten! Que lo maten!

Um lúgubre toque de cometa deu o sinal de morte. Pela primeira vez, fez-se no circo um pouco de calma quase silente na qual se sentia resfolegar a velha alma espanhola

E o guapo Torbellino na sua linda roupa cor de esmeralda, perfilou-se defronte do touro expondo-lhe a capa vermelha, debaixo da qual se escondia a lâmina fatal. O adversário, de cabeça baixa, a arfar com o corpo todo, recuava defronte dele, negando-se à provocação; mas os capinhas tanto o instigaram e tanto o enredaram nos seus mil ardis, que o condenado foi afinal colocar-se diante do Matador, em posição favorável para receber o supremo golpe.

Torbellino não deixou fugir a vez. Aprumou-se, mediu o bote e, com um gracioso salto de mestre, enterrou-lhe até os punhos a espada na raiz do pescoço, por entre os cornos.

A arma ficou no corpo do ferido, e este estacou, como surpreso do que se passava por dentro dele. O Matador aproximou-se então da sua vitima, puxou-lhe da cerviz à ensangüentada espada e bateu-lhe com ela desdenhosamente na cara.

O touro deu ainda um arranco, que era já de moribundo, a cambalear, cruzando as pernas da frente, e foi cair ao lado do último cavalo morto.

Levantou então a cabeça e abriu os seus olhos de animal vindo ao mundo para ser bom e forte. Da boca escorria-lhe sangue, mugiu soturnamente, e nesse mugido ia toda a lamentação de sua alma simples pelos campos verdes e amigos, que ele tivera de deixar para vir morrer ali tão cruamente nas mãos de bárbaros.

E por fim, deixando pender a cabeça sobre o flanco do companheiro de sorte, suspirou muito repousadamente como um ente humano quando adormece.

Nápoles, agosto de 1910.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010


Raul Pompéia
OS GATOS E OS CÃES

(Psicologia cano-felina)

Desde o histórico amigo do bíblico Tobias, que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S. Bernardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal de Alcebiades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimaus, que arrosta as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do cão.

Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efígie em douradas placas, para garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso unânime e universal.

Entretanto, o gato, o bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranqüilidade dos armários e para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato, deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas; caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e das caveiras de burro fatídicas.

Pobre gato!

Nos seus minutos de cisma, quando, pousado no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o sacrifício da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e pôr de lado os seus orgulhos de sangue.

A glória do cão vem somente disto; o cão escravizou-se.

O gato nunca teve um dono.

Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.

Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.

Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: - eu sou deste gato.

E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.

Toda a fanfarronice trovejante do cão pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato...

O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame, do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas decantadas bravuras, o cão não existe.

O gato, ao contrário, é autonomista. É valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.

Sente nas veias o sangue quente do tigre; lembra-se que os da sua raça terrível vagam pelas florestas, como reis, em guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres, olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes, arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial das feras.

O gato sabe que é um pequeno tigre; que podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e entrega-se confiado ao amigo...

Despreza solenemente o cão, ama lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não treme, à beira dos precipícios, como os cães.

A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.

Não sabe cair grotescamente como um burguês gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega. A sua queda é elegante como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.

Tudo diverso do cão.

A cadela é a charra odaliscazinha das sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar com lepra num cano de esgoto.

Entretanto, os amores do gato são trágicos como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noute, como os grandes meteoros do céu e as cousas fantásticas da terra.

Podem ter por confidentes a estrela dalva e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados até o sangue.

Os sete fôlegos que lhe atribuem, ele os despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria paixão.

A morte do gato é quase sempre um mistério. Não morre; desaparece como o Rômulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino de apodrecer nas praias.

Assim é que bem se consola o gato, nos tácitos queixumes das suas cismas...

O cão tem incensadores que o exploram e que o infamam.

Tem golilha, como um forçado; como um escravocrata, não tem vergonha.

Esta falta de brio e essa coleira levam-no a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações, e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.

Adula sem fazer questão de lugar.

Ambiciona só isto: - um osso. Mas não desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da rua...

Glória por tal preço... Antes a secular obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão e a infâmia.

Em última análise, o cão é um miserável.

Fora da linha dos animais, por uma degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina.

O cão, seja lícito dizer-se, é o homem através do temperamento canino.

O gato é simplesmente, nobremente, - o gato.

Por isso é que nas alegorias, entra o gato como pilhéria e o cão como insulto.

Enquanto um atravessa, risonho, à disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela de lama para a cara de um tratante.

Há uma cousa entre os homens que chama-se cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem há de ser.

Em suma derradeira indenização do sempre olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena... nenhuma, nem uma só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.

- Cão!

Este insulto tem mais alguma cousa do que três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.

Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.

Digam-na para ver se a garganta não quando cospe-a e quando cospe um escarro:

- Cão!

.................................................................

Damos publicidade a estas estranhas considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O Peru

Fora o comprade Damião que lhe apresentara o dr. Artur. Velho conhecido, garantira-lhe os conhecimentos da lei e o poder da palavra. Aloísio contara-lhe estar sendo vítima da cobiça do coronel, na forma de uma ação de limites de terra. Sendo homem de paz, procurava a justiça. Não que fosse desses que baixam a crista diante de ninguém, mas porque reconhecia haver passado o tempo da repetição.
O dr. artur ponderara as dificuldades da causa. Lembrara o prestígio político e o poderio financiro do coronel. Mas Aloísio, intransigente, convencera o advogado da sua firme decisão em defender-se. Estava disposto. Dinheiro não seria problema, ficasse certo disso. Nem que fosse preciso comprar o juiz. Neste ponto, o dr. Artur levantou a voz para informar que o juiz da comarca era homem sério, íntegro, jamais aceitando suborno. Ao que Aloísio objetara: "Que nada, doutor; todo homem tem seu preço!".
O encontro fora há três meses. De lá para cá, fizeam-se petições e requerimentos. Audiências forma marcadas, direitos foram discutidos. Arrolaram-se testemunhas e ouviram-se depoimentos. e o processo engordava em informações e pareceres. O advogado contrário, numa hábil manobra, conseguira que o juiz que a colheita, na área litigante, fose suspensa. quando o oficial de justiça apresentou a notificação, Aloísio teve um acesso de fúria. "Como se atreve, moleque, vir à minha fazenda para proibir que eu colha o que é meu!" E antes que o representante da justiça disesse palavra, agarrou-o pelo colarinho. Os parentes acorreram, mas o homenzinho já tinha conseguido safar-se.
Aloísio deixara-se cair numa cadeira. Já não era o dono de sua própria terra. a segurança de sua velhice e de sua família estavam ameaçadas. O roubo, através do caxixe, batia finalmente à sua porta. Mas antes de o ladrão levar a melhor muita água ainda rolaria pela fonte. Ficassem certos disso. Não entregaria sua roça, o melhor pedaço dela, de mão beijada. Tinham que matá-lo primeiro. É analfabeto, reconhece. Grosseiro, mesmo quando pretende ser engraçado. Mas não é um estrupiço qualquer para que qualquer um chegue e lhe tome o que é seu. Usará a violência, se for preciso. e não será seu corpo que ficará estendido em curva de caminho, fazendo assombração.
"Seu Aloísio - dissera-lhe o advogado após o incidente - o senhor precisa entender que não é assim que se resolverá a questão. A suspensão da colheita, na área do conflito, éuma medida de praxe. O senhor deveria saber disso. Trata-se de medida de rotina. o senhor continua dono de sua terra, só que não pode colher". Aloísio admite, finalmente. Agora, mais calmo, ouve o homem da lei e pede esclarecimentos. Conta mais uma vez sua luta pioneira na conquista da terra. Não pode perdê-la assim sem mais nem menos. Foram anos metido nas brenhas, cabana no meio da mata,completando o de comer com carne de caça. Explicava com voz sumida, a fala entre os dentes. o revólver coçava-lhe na cintura. "Só mais quinze dias, seu Aloísio. Está-se fazendo o que pode. Confie em Deus e na justiça. a defesa está bem fundamentada. Já se marcou a audiencia final. Vá para casa e só venha no ia combinado".
Aloísio levantou-se e apanhou o chapéu no cabide da parede. Confiava no homem, embora tivesse dúvida sobre o resultado final da questão. Há dias pensava em dizer aquilo ao advogado. Diria? Disse: "Doutor, o senhor me deculpe, mas tenho na roça uns porquinhos de chiqueir, criados com mimos e umas aves que a mulher cuida com muito gosto. Quem sabe não poderíamos mandar pelo menos um peru para o juiz!". "Nem pense numa coisa dessa, objetou o advogado; não vá botar os burros n'água, estragando tudo. Já lhe disse que o juiz é pessoa íntegra e não aceita subornos. seria uma loucura pensarmos nisso".
O encontro com Dagmar não tivera o ardor das outras vezes. duas horas mais tarde, tomou o caminho da casa do dr. Artur. o percurso pareceu-lhe mais longo, tão longo e cansativo quanto a viagem de trem. Durante a caminhada, evitava encontros com conhecidos e a passagem por lugares habituais. sua mão conferia instintivamente a presença da arma.
A noite já cobria por inteiro a cidade quando chegou à casa do advogado. Uma aragem adocicada vinha das bandas do porto e um arrepio percorria-lhe o corpo. Que diabo faz esse doutor que não vem abrir logo a porta? - pensa. Bate com mais força. O advogado aparece, finalmente. No rosto, um sorriso largo de vitória. O convite para entrar e o abraço.
-Parabéns, seu Aloísio. Vencemos a causa!
Sem jeito, encabulado, um esgar idiota na boca e a voz estrangulada no peito.
Por fim, desabafa:
-Foi o peru, doutor, foi o peru!
-Que peru, homem? - indaga o advogado.
-O peru que mandei para o doutor juiz.
-Não, não é possível! - berra o causídico.
-Sim, foi o peru, o senhor pode estar certo - explica Aloísio. -Mas saiba o senhor que eu mandei a ave em nome do coronel.

José Aroldo Castro Vieira

" Peço o privilégio de não nascer...não nascer até que você possa me garantir um lar e um mestre para me proteger, assim como o direito de viver enquanto meu corpo estiver saudável e eu puder gozar a vida...não nascer até que meu corpo seja algo precioso e o ser humano tenha parado de explorá-lo apenas por ser barato e estar disponível em grande quantidade". Autor desconhecido

O cachorrinho engraçadinho

Há coisa mais triste que um menino sem irmãos nem companheiros, fechado num apartamento? Foi por isso que a família resolveu arranjar um cachorrinho para brincar com o filho único. Os brinquedos, afinal, são máquinas e acabam por enfastiar; o cachorrinho é um brinquedo vivo, quase humano, o melhor amigo do homem. E veio o cachorrinho, muito engraçadinho. Todos o cercaram, encantadíssimos. Dizem que os cães sempre se parecem com seus donos, este se parecia com os donos, com os amigos dos donos e até com os empregados da casa. Não se pode ser mais amável. Era pretinho, lustroso, com umas malhas cor de mel em certos lugares do focinho e do corpo. Orelhas sedosas e moles, e um rabinho que o menino logo descobriu poder funcionar como manivela. E assim o utilizou.

O cachorrinho também parecia contentíssimo, e pulava para cá e para lá, e às vezes parecia um cavalinho em miniatura, mas era uma miniatura de Pinscher.

Não era só engraçadinho; era inteligentíssimo. Se lhe ensinassem, creio que chegaria a atender o telefone. Instalou-se no apartamento como se fosse o seu principal habitante. A vida passou a girar em torno dele. Deram-lhe coleira, casaquinho, osso artificial para brincar, puseram-lhe nome, compraram-lhe biscoitos. Talvez ele até entendesse o que diziam a seu respeito, pois a cozinheira reparou que a sua inteligência excedia a das criaturas humanas. Via-o fitar um ponto vazio, acompanhar uma presença invisível, para a qual latia, demonstrando ser um animal dotado de poderes sobrenaturais: um cãozinho vidente. Nessas condições, nem precisava entender a nossa linguagem: podia captar diretamente os pensamentos ...

O cachorrinho engraçadinho recebia as visitas com grande efusão. Mordia-as de brincadeira nas pernas e nos braços, às vezes puxava um fio de meia – mas era muito engraçadinho – dava saltos verticais que nem um bailarino, e, como estava na muda dos dentes, babava as pessoas com muito entusiasmo e de vez em quando deixava cair por cima delas um de seus dentinhos, tão brancos e primorosos que pareciam de matéria plástica.

Além de receber as visitas, o cachorrinho engraçadinho sentava-se ao lado delas, acompanhava com os olhos as suas expressões, despedia-se delas com muita gentileza.

Acostumou-se de tal modo à família que não quis mais dormir sozinho, passou a ocupar o melhor lugar das camas, como ocupava o das poltronas. E quis também comer à mesa, escolhendo uma cadeira e colocando as patinhas no lugar que a etiqueta recomenda, e que já bem poucas pessoas conhecem – como se pode observar em qualquer restaurante.

Até certo ponto o cachorrinho engraçadinho foi um divertimento, salvo quando molhava os tapetes ou almofadas.

Cecília Meireles

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Perde o Gato



Um jornal é lido por muita gente, em muitos lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a todos, pelo menos a um certo número de pessoas. Mas o que me brota espontaneamente da máquina, hoje, não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo. O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna. Trata-se de um gato.

Não é a primeira vez que o tomo para objeto de escrita. Há tempos, contei de Inácio e de sua convivência. Inácio estava na graça do crescimento, e suas atitudes faziam descobrir um encanto novo no encanto imemorial dos gatos. Mas Inácio desapareceu - e sua falta é mais importante para mim, do que as reformas do ministério.

Gatos somem no Rio de Janeiro. Dizia-se que o fenônemo se relacionava com a indústria doméstica das cuícas, localizada nos morros. Agora ouço dizer que se relaciona com a vida cara e a escassez de alimentos. À falta de uma fatia de vitela, há indivíduos que se consolam comendo carne de gato, caça tão esquiva quanto a outra.

O fato sociolóligo ou econômico me escapa. Não é a sorte geral dos gatos que me preocupa. Concentro-me em Inácio, em seu destino não sabido.

Eram duas da madrugada quando o pintor Reis Júnior, que passeia a essa hora com o seu cachimbo e o seu cão, me bateu à porta, noticioso. Em suas andanças, vira um gato cor de ouro como Inácio - cor incomum em gatos comuns - e se dispunha a ajudar-me na captura. Lá fomos sob o vento da praia, em seu encalço. E no lugar indicado, pequeno jardim fronteiro a um edifício, estava o gato. A luz não dava para identificá-lo, e ele se recusou à intimidade. Chamados afetuosos não o comoveram; tentativas de aproximação se frustaram. Ele fugia sempre, para voltar se nos via distantes. Amava.

Seria iníquo apartá-lo do alvo de sua obstinada contemplação, a poucos metros. Desistimos. Se for Inácio - pensei - dentro de um ou dois dias estará de volta. Não voltou.

Um gato vive um pouco nas poltronas, no cimento ao sol, no telhado sob a lua. Vive também sobre a mesa do escritório, e o salto preciso que ele dá para atingi-la é mais do que impulso para a cultura. É o movimento civilizado de um organismo plenamente ajustado às leis físicas, e que não carece de suplemento de informação. Livros e papéis, beneficiam-se com a sua presteza austera. Mais do que a coruja, o gato é símbolo e guardião da vida intelectual.

Depois que sumiu Inácio, esses pedaços da casa se desvalorizaram. Falta-lhes a nota grave e macia de Inácio. É extraordinário como o gato “funciona” em uma casa: em silêncio, indiferente, mas adesivo e cheio de personalidade. Se se agravar a mediocridade destas crônicas, os senhores estão avisados: é falta de Inácio. Se tinham alguma coisa aproveitável era a presença de Inácio a meu lado, sua crítica muda, através dos olhos de topázio que longamente me fitavam, aprovando algum trecho feliz, ou através do sono profundo, que antecipava a reação provável dos leitores.

Poderia botar anúncio no jornal. Para quê? Ninguém está pensando em achar gatos. Se Inácio estiver vivo e não seqüestrado, voltará sem explicações. É próprio do gato sair sem pedir licença, voltar sem dar satisfação. Se o roubaram, é homenagem a seu charme pessoal, misto de circunspeção e leveza; tratem-no bem, nesse caso, para justificar o roubo, e ainda porque maltratar animais é uma forma de desonestidade. Finalmente, se tiver de voltar, gostaria que o fizesse por conta própria, com suas patas; com a altivez, a serenidade e a elegância dos gatos.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 2 de janeiro de 2010

O Cão Viajante

A notícia veio de São Paulo, trazida por Anhembi. Foi o caso que certo cavalheiro de posses – um grã-fino, diz a revista – regressou dos Estados Unidos em companhia de um cachorro de raça, lá adquirido. No aeroporto de Congonhas, diante dos funcionários da Alfândega, houve a abertura de malas, e verificou-se que quatro eram do cachorro: uma com roupas, outra com coleiras e focinheiras; uma terceira com vitaminas, e a última com alimentos especiais.
O comentarista fala na Revolução Francesa, que reagiu contra coisas dêsse gênero, e na Revolução Russa, que reuniu em museu as jóias oferecidas pelos aristocratas a seus cães e cavalos. Expus o caso a um cachorro de minhas relações, chamado Puck, e êle manteve comigo, por meio dos olhos e da cauda saltitante, êste diálogo quase maiêutico, embora às avessas.
– As malas eram quatro, diz você?
– Realmente, meu caro Puck.
– Com certeza eram malinhas à-toa...
– Não consta da notícia, mas presumo que fôssem malas consideráveis.
– E você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito a mala?
– Não é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante tão sóbrio de natureza, como – não é por estar em sua presença – eu considero o cão.
– E quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
– A revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
– Você acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e seu cão não tenha pelo menos quatro?
– Mas veja bem, Puck, o homem é um animal complicado e que se afastou da natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou desprezam.
– Essas coisas são necessárias à vida?
– São, na medida em que a tornam mais agradável.
– E não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de outros animais em condições de saboreá-las?
– Teòricamente, talvez. Não acha, porém, que seria caso de estendê-las antes a todos os homens?
– Elas chegam para todos?
– No estado atual da produção, é capaz de não chegarem.
– Então, que adiantaria?
– Pelo que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a minha, quando as duas se entendem há milênios.
– Engano, meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo precisamente um comêço tímido de sensibilidade, a abotoar-se como uma florzinha anêmica. Todo êsse cuidado com o cão, um simples cão (pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as criancinhas, e dia virá em que...
– Êle se estimará a si mesmo, através dos outros?
– Não vou a tanto – resmungou Puck. – Também, você está exigindo demais de seus semelhantes.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

OLHOS DE PREÁ

Nem tudo no ano escolar foi pichação de parede, pedra jogada na testa da polícia. Quem era de estudar estudou, fez pesquisa, juntou coisas para provar. Aí, organiza-se uma exposição, mas que seja bem bacana. Sem ar de museu antigo, objetos falando, contando o esforço de aprender e transmitir, a alegre descoberta da natureza pela moçada.
A turma do científico quer lá saber de apresentar só desenhos e fotos. Durante o ano, andou por Manguinhos e Butantã, trabalhou em laboratórios, adquiriu saber de experiências feitas. Então, vai mostrar os soros, as vacinas, os pequenos animais empalhados que documentam a praxis, como gosta de dizer um líder da turma.
-É pouco. A gente tem de trazer animais vivos, para demonstração na hora. Do contrário, vão pensar que não foi a gente que fez essa coisada toda aí.
-Claro. O negócio é partirpara a vivissecção diante do pessoal da velha guarda.
Toca a procurar cobaia, mas parece que as cobaias, não participando do interesse pelas ciências experimentais, entraram em recesso nesse verão. Cobaia adora ser tratada de porquinho-da índia e viver em paz no jardim à beira d'água; mas se a chamam de cobaia, vê nesse nome conotações ingratas, e dá no pezinho. Os rapazes procuraram em vão. Até que um se lembrou:
-Preá é a mesma coisa.
-Quem não tem cobaia caça com preá - concordaram, abusando da preposição.
E preá, por sorte, não foi difícil arranjar. Um aluno que mora em Jacarepaguá comprou um, de um vendedor de bichos caçados. Deus sabe a grande vedeta, por ocasião da visita do Governador.
-O ou a? No livro de Dona Flávia sobre mamíferos, preá é feminina, como a sabiá do Chico.
-O gênero do substantivo não importa, importa é o sexo. É preá macho ou fêmea.
Era fêmea. e uma doçura de fêmea, no pêlo, nos olhos, sobretudo nos olhos. A preá olhava para os rapazinhos, para a casa, para o mundo, co ar de quem acha tudo inofensivo e bom de existir. Era uma preá desejosa de acabar com o muro erguido entre os seres chamados racionais e os seres chamados irracionais, como se todos, preás e não preás, fossem da mesma e única família possível no mundo, uma infinita, solidária família.
Afasta o diabo dessa diabinha pra lá - pediu um colega. - Assim, como é que a ciência pode avançar?
- Eu não me deixo levar por olhinhos de preá- repeliu o futuro grande cirurgião de transplantes. - Comigo é no interesse da comunidade. A preá está ótima, novinha, músculos tenros, a demonstração vai ser uma beleza.
-Diz-se que a carne dela, nessa idade, é uma coisa.
-E você tem coragem de cozinhar e comer uma preá destinada ao serviço da ciência, bandido?
Se as opiniões se dividiam, a graça era uma só, e tão evidente que até o Zerbini em potencial acabou reconhecendo que cortar um bichinho assim talvez não fosse o melhor número da exposição. Aqueles olhos...
-Rosados, você já viu uma tonalidade dessas?
-Rosados e luminosos.
-Luminosos e confiantes - descobriu a moça.
-Isso! eles confiam na gente. Pessoal, não pode ser! - bradou o comprador do prá. E peremptório:
-Essa não passa pelo facão de jeito nenhum, e vai se chamr Andréia, como a nossa coleguinha, que descobriu o segredo dos olhos dela.
Eis aí porque, ao visitar a exposição dos alunos do Colégio de Aplicação daUniversidade da Guanabara, o Governador Negrão de Lima não poderá apreciar a técnica dos jovens vivisseccionistas. O olhos da preá venceram a parada contra a ciência.

Carlos Drummond de Andrade