sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

OLHOS DE PREÁ

Nem tudo no ano escolar foi pichação de parede, pedra jogada na testa da polícia. Quem era de estudar estudou, fez pesquisa, juntou coisas para provar. Aí, organiza-se uma exposição, mas que seja bem bacana. Sem ar de museu antigo, objetos falando, contando o esforço de aprender e transmitir, a alegre descoberta da natureza pela moçada.
A turma do científico quer lá saber de apresentar só desenhos e fotos. Durante o ano, andou por Manguinhos e Butantã, trabalhou em laboratórios, adquiriu saber de experiências feitas. Então, vai mostrar os soros, as vacinas, os pequenos animais empalhados que documentam a praxis, como gosta de dizer um líder da turma.
-É pouco. A gente tem de trazer animais vivos, para demonstração na hora. Do contrário, vão pensar que não foi a gente que fez essa coisada toda aí.
-Claro. O negócio é partirpara a vivissecção diante do pessoal da velha guarda.
Toca a procurar cobaia, mas parece que as cobaias, não participando do interesse pelas ciências experimentais, entraram em recesso nesse verão. Cobaia adora ser tratada de porquinho-da índia e viver em paz no jardim à beira d'água; mas se a chamam de cobaia, vê nesse nome conotações ingratas, e dá no pezinho. Os rapazes procuraram em vão. Até que um se lembrou:
-Preá é a mesma coisa.
-Quem não tem cobaia caça com preá - concordaram, abusando da preposição.
E preá, por sorte, não foi difícil arranjar. Um aluno que mora em Jacarepaguá comprou um, de um vendedor de bichos caçados. Deus sabe a grande vedeta, por ocasião da visita do Governador.
-O ou a? No livro de Dona Flávia sobre mamíferos, preá é feminina, como a sabiá do Chico.
-O gênero do substantivo não importa, importa é o sexo. É preá macho ou fêmea.
Era fêmea. e uma doçura de fêmea, no pêlo, nos olhos, sobretudo nos olhos. A preá olhava para os rapazinhos, para a casa, para o mundo, co ar de quem acha tudo inofensivo e bom de existir. Era uma preá desejosa de acabar com o muro erguido entre os seres chamados racionais e os seres chamados irracionais, como se todos, preás e não preás, fossem da mesma e única família possível no mundo, uma infinita, solidária família.
Afasta o diabo dessa diabinha pra lá - pediu um colega. - Assim, como é que a ciência pode avançar?
- Eu não me deixo levar por olhinhos de preá- repeliu o futuro grande cirurgião de transplantes. - Comigo é no interesse da comunidade. A preá está ótima, novinha, músculos tenros, a demonstração vai ser uma beleza.
-Diz-se que a carne dela, nessa idade, é uma coisa.
-E você tem coragem de cozinhar e comer uma preá destinada ao serviço da ciência, bandido?
Se as opiniões se dividiam, a graça era uma só, e tão evidente que até o Zerbini em potencial acabou reconhecendo que cortar um bichinho assim talvez não fosse o melhor número da exposição. Aqueles olhos...
-Rosados, você já viu uma tonalidade dessas?
-Rosados e luminosos.
-Luminosos e confiantes - descobriu a moça.
-Isso! eles confiam na gente. Pessoal, não pode ser! - bradou o comprador do prá. E peremptório:
-Essa não passa pelo facão de jeito nenhum, e vai se chamr Andréia, como a nossa coleguinha, que descobriu o segredo dos olhos dela.
Eis aí porque, ao visitar a exposição dos alunos do Colégio de Aplicação daUniversidade da Guanabara, o Governador Negrão de Lima não poderá apreciar a técnica dos jovens vivisseccionistas. O olhos da preá venceram a parada contra a ciência.

Carlos Drummond de Andrade





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